A liberdade contratual, fundamento básico dos contratos segundo as letras do Código Civil, garante às partes autonomia para estipular as condições do contrato. No entanto, essa liberdade de estipular não é absoluta, pois deve obedecer aos limites legais e principiológicos do contrato, sobretudo sua função social, bem como aos princípios da boa-fé e probidade (art. 421/CC). Quando o pacto extrapola tais limites, distorce-se a liberdade contratual, o que dá ensejo à libertinagem contratual, prática abusiva que compromete a boa formação do contrato.
Não é exagerado afirmar que a libertinagem contratual se detecta, com relativa frequência, no campo dos contratos firmados pelo produtor rural, notadamente aqueles que visam a comercialização/alienação da produção agrícola, o que engloba a cédula de produto rural. No entanto, o mesmo vício, mudando o que deve ser mudado, também pode ser encontrado nos contratos de mútuo, o que pode atingir a própria cédula de produto rural financeira.
O produtor rural, por diversas razões, ocupa posição de vulnerabilidade na fixação dos termos do contrato de venda de produção agrícola, máxime em face das seguintes realidades fáticas presentes ao tempo da comercialização: (i) sua produção é perecível e volumosa; (ii) os produtos são colhidos e ofertados numa mesma região e num mesmo momento; (iii) a estrutura de armazenagem própria é insuficiente ou inexistente; (iv) a estrutura de armazenagem de terceiros é cara, insuficiente ou inexistente; (v) o mercado comprador é restrito, com poucas ou mesmo uma única empresa na região e, a (vi) necessidade de obter recursos financeiros para fazer frente aos gastos com a próxima safra pressiona a venda. A tudo isto se acrescente a notória hipossuficiência do produtor em relação às empresas que com ele transacionam. Tais fatores, obviamente, enfraquecem e submetem o produtor à vontade e condições do comprador, o qual assume posição altamente privilegiada na concretização do negócio em seu favor.
Assim, dentre as muitas cláusulas leoninas presentes em tais contratos por força da supremacia do comprador, vale destacar: (i) as que tratam do inadimplemento (wash out); (ii) da cláusula penal; (iii) da que autoriza a classificação unilateral do produto pelo comprador; (iv) da que estipula o pagamento do preço somente após a entrega total do produto, mesmo não se tratando de compra e venda a prazo; (v) da que autoriza a rescisão do contrato pelo comprador em razão de o vendedor não satisfazer certas condições do negócio; (vi) da que torna vencido antecipadamente o contrato.
À luz das realidades fático-jurídicas acima indicadas que impõem ao produtor vender a produção, é possível assegurar que ao menos dois vícios do negócio jurídico disciplinados pelo Código Civil podem estar presentes na formação desses contratos e, diga-se, com potencial de decretar sua nulidade, a saber, o da coação e o da lesão, consoante sobressaem, respectivamente, dos artigos 151 e 157 do Código Civil.
A coação consiste no temor de dano iminente e considerável que poderá ser contra a pessoa, seus familiares ou mesmo contra seus bens. Já a lesão tem a ver, por exemplo, com obrigação desproporcional assumida por uma das tares sob premente necessidade.
Em face das razões supra destacadas, as quais estão presentes no momento da firmação dos contratos de comercialização da produção agrícola, facilmente se percebe que o produtor rural negocia sob temor de dano aos seus bens, assumindo obrigações desproporcionais em face de premente necessidade de vender.
O temor decorre do fato de, ao não se submeter as condições impostas pelo comprador, a produção não tem como ser armazenada adequadamente, o que levará ao seu perecimento, coisa que não é ignorada pela parte interessada na aquisição. Já a premente necessidade sobressai do fato de ter que obter recursos financeiros para o plantio da nova safra, o que somente será possível com a venda da produção colhida, coisa que também não foge ao conhecimento do comprador.
As cláusulas presentes nos aludidos contratos denunciam enorme desproporcionalidade entre as obrigações assumidas pelo vendedor e as assumidas pelo comprador, sendo que este último tem cláusulas penais tão módicas e singelas, que comparativamente as assumidas pelo vendedor nem podem ser adjetivadas de penais. Outrossim, não é menos verdadeiro que até mesmo quantitativamente falando as cláusulas em tudo se voltam em benefício do comprador, pois num contrato de 30 cláusulas, além de seus parágrafos e incisos 2 apenas, se tanto, se propõem a resguardar o interesse do vendedor, e mesmo assim com relativa dose de efetividade.
Não se pode olvidar, outrossim, que tais contratos são redigidos exclusivamente pelo comprador, que tem o arbítrio de estipular todas as suas condições como, por exemplo, o de classificar o produto transacionado com classificação unilateral e sem um mínimo de transparência ou publicidade adequada do seu procedimento, o que o caracteriza como autêntico contrato de adesão (Art. 423 CC).
Não sem propósito é mister lembrar que a atividade agrícola possui função social relevante, a saber, o de assegurar efetividade ao sagrado direito à alimentação (Art. 6º/CF), bem como de assegurar a paz social via organização do abastecimento alimentar conforme preceitua o art. 2º, IV, Lei nº 8.171/91, razão pela qual deve ser protegida desde o plantio até a comercialização.
Portanto, diante desses contratos, os quais dão evidência da presença da libertinagem contratual, o produtor rural tem embasamento fático-jurídico suficiente para revisionar ou mesmo anular o estipulado, preservando seu patrimônio e sua estrutura de produção no interesse da sociedade como um todo. E na aplicação da Lei ao caso concreto, deve o juiz deixar-se orientar pelo disposto no art. 5º da LINDB que lhe impõe atender aos fins sociais e as exigências do bem comum presentes na norma.
Lutero de Paiva Pereira – Advogado